Almerinda Rosa Correia
Assinalamos o dia 8 de Março, Dia da Mulher, relembrando a vida de Almerinda Rosa Correia, a quem já tínhamos feito referência aqui. |
Às 11 horas do dia 9 de Março de 1920, no nº 24 da Rua Coronel Barreto, em Sesimbra, nascia Almerinda Rosa Dias Carreira, que se viria a notabilizar, a partir dos anos 40 do século XX, como desportista em Almada. Mas naquele dia quem surgia ao mundo era a filha de uma modesta família que morava nos fundos de uma taberna, praticamente localizada no largo do Município - na casa onde hoje se encontra o restaurante "O Município". O pai de Almerinda, Domingos Carreira, era um jovem de 27 anos, natural de Idanha a Nova, que a profissão de Guarda Fiscal trouxera para Sesimbra. A mãe, pelo contrário, era uma genuína pexita de 24 anos: Ana Maria Rosa, filha de Manuel e Joaquina Casimiro Rosa. Serviram de testemunhas ao registo de nascimento um empregado dos faróis, Abel Ribeiro, e sua mulher Maria.
Alguns anos mais tarde a família de Almerinda muda-se para Almada, vila onde a jovem conhecerá aquele que virá a ser o seu marido, Romeu Correia, natural de Cacilhas, conhecido escritor da corrente neo-realista.
Episódios da vida do jovem casal acabaram por ficar registados nas obras de Romeu Correia, que recorria com frequência a aspectos da sua vida que incorporava nos seus livros. Entre estas obras destaca-se, com especial interesse para Sesimbra, o romance "Trapo Azul", publicado em 1947. É precisamente a história da família de um guarda-fiscal que vive em Sesimbra e que mais tarde se muda para Almada. A principal personagem do romance, Laurinda, sem dúvida deve ter sido inspirada em Almerinda, pois ambas tiveram mais tarde a profissão de costureira – trabalhando na confecção nos fatos-de-macaco de ganga usados pelo operariado dessa época – o "trapo azul" que dá nome ao romance.
Uma boa parte do romance "Trapo Azul" passa-se em Sesimbra. apresentando diversos retratos da vila através dos olhos da jovem Laurinda, certamente recriados pelo autor com a ajuda da memória da sua mulher: o naufrágio na praia e a devoção ao Senhor das Chagas, a procissão do Senhor das Chagas: tanto a verdadeira, como uma reconstituição de brincadeira feita pelas miúdas da vila:
«As hortas ficavam a um girinho da vila. Depois dos becos e travessas, passávamos pela estrumeira da Câmara – e logo os nossos pés a calcorrear o chão ondeante, bravio. Dávamos as mãos umas às outras, em comprido cordão: uma fila de sete, oito, dez. Primavera desejada! Num campo cheio de sol, livres de pais, mães e tias, chilreávamos de felicidade. Tapetes de malmequeres brancos e amarelos, cachimbos e cãezinhos; aqui e ali, abelhudos, espreitavam goivos. Nossos olhos encharcados de cor! Narizes a sorver perfumes! E colhíamos ramilhetes, sortíamos efeitos, caprichávamos matizes, sôfregas de prazer e encanto. Com as diversas flores colhidas preparavam o enfeites: cordéis à volta da cintura, da cabeça e dos punhos. No tronco colocavam malmequeres amarelos; os mais raros malmequeres brancos iam para a grinalda; mas todas queriam levar a rede: um pedacito de rede na cabeça representava o "manto de Nossa Senhora", o manto do céu; tinham que tirar à sorte com pedrinhas ("pedrinha, pedrinha, quem quer ser a madrinha?"). Cortejo encabeçado por uma cruz de cana ("A treze de Maio / apareceu Maria…") percorriam as ruas vazias, "olhos em frente, passo lento, solene".» |
Vários outros episódios e apontamentos, vistos pelos olhos da jovem Laurinda, desfilam gostosamente nas palavras de Romeu Correia: um cão atropelado; duas vizinhas a "baterem-se de língua"; um pescador a fazer cabriolas; os "robertos" e os seus personagens (“Zé Broa”, "Padreca", "Miquelina", e o "Polícia"); os recados:
- «Pega. Trás dois tostões de cloreto… - Mãe, tostão pra pinhões… - Deixa-me negra! Não me tentes! |
No Inverno:
«Passavam os pescadores, embarretados, mãos encafuadas nos bolsos; e velhotas, a tiritar, de xaile pela cabeça, só os olhos e aponta do nariz de fora.» |
Na pesca:
«Os senhores das companhas usam ainda as mesmas contas dos seus pais, herdadas dos avós – e em toda a praia não há velho que saiba explicar quem criou aquela lei tão natural, de números tão respeitados, mas tão absurda. E os homens voltam todos os dias para o mar, acriançados no falar, velhinhos na pele do rosto – parecendo meninos teimosos a receber o castigo das ondas.» (1) |
Romeu Correia começou a trabalhar em 1941 para o Banco Nacional Ultramarino, mas com modestas funções que o obrigavam a ir para a província, tendo passado 3 meses na Régua e 19 meses em Torres Vedras. Foi aqui que casou, em 31 de Outubro de 1942, com Almerinda Rosa, que viria a agregar o apelido Correia ao seu nome. Eis como Romeu Correia descreve esses tempos:
«Dias tragicómicos na vida de um jovem apaixonado, com encargo de mulher, que alugara a força de trabalho por dez escudos diários, quantia irrisória que mal custeava uma refeição. Mas uma vez apartado da minha rapariga e sujeito a tão dura prova de resistência física (…) regressei à minha terra natal trazendo na minha leve bagagem duas ambições: conseguir aperfeiçoar-me no ofício de contista e dramaturgo, e fazer triunfar a minha rapariga nas competições e jogos atléticos. Este último desejo foi pouco depois coroado de êxito, pois a Almerinda conquistou lugar de relevo no atletismo dos anos 40, chegando mesmo a recrutar, graças ao seu prestígio pessoal, cerca de vinte jovens para a prática de tão sã modalidade.» |
É também provável que tenha natureza autobiográfica o conto "A relva e o ovo", que relata a vida de um casal que vive na província, enquanto aguarda transferência para Lisboa (pelas datas referidas acima, Romeu e Almerinda devem ter permanecido ainda, após o casamento, três meses em Torres Vedras.)
«Ao findar o serviço bancário, não a encontrando em casa ou sob o caramanchão, sabia tê-la lá em baixo, ajoelhada, na barrela. Gritava-lhe convidativo: - Queres vir treinar-te, Almerinda? Ela trepava para a margem, com o alguidar atestado de roupa e retorquia - Vamos, sim. Era só questão de fazer sair o vestido pela cabeça e calçar os sapatos-de-bicos, pois o calção e a blusa serviam de roupa branca…» |
Recorde-se que nesse tempo não existiam estádios ou pistas para treinos em Almada: era nas ruas que as atletas treinavam. Romeu Correia salienta: "Isto ainda era bastante propício a preconceitos parvos quando uma rapariga se exibia em calções, correndo e saltando, ante mil olhos-velhos." E no conto "A relva e o ovo" pode ler-se:
«Os nossos treinos tinham sempre curiosa assistência. Futebolistas, garotada e muitos camponeses, embasbacados, que pelo cimo da linha férrea faziam trilho. Éramos popularíssimos. Nos primeiros tempos os calções de Almerinda custaram-nos alguns reparos. Mas os olhos dos burgueses e do mulherio desprevenido foram perdendo o engodo pelo escândalo, rareando, por fim, os ditos e os risos.» |
Camisola-bandeira de Almerinda Correia (clique)
Almerinda começou por praticar desporto federado na União Sport Clube Almadense, que depois se fundiu com o Pedreirense Futebol Clube para dar origem ao Almada Atlético Clube. Era um clube tão pobre que nem tinha dinheiro para uma bandeira. Almerinda foi a primeira atleta a representar o Atlético e, tendo vencido a prova, colocou-se o problema da bandeira para hastear na cerimónia de honra: não havia. Solução: a camisola amarela da atleta, por ela mesma confeccionada, subiu no mastro do Estádio Nacional. Ainda hoje essa "bandeira" é venerada na sede do clube, em Almada.
Almerinda Rosa Correia foi por cinco vezes campeã de Portugal e venceu por seis vezes os Campeonatos Distritais nos Torneios de Lisboa, na modalidade de lançamento de peso, disco e dardo. Como atleta completa, aliou os brilhantes resultados no arremesso a outras distintas classificações em corridas e saltos. No total, obteve 11 primeiros lugares, 11 segundos e 16 terceiros. A Câmara de Almada homenageou-a pela sua actividade desportiva e associativa, tendo-lhe atribuído o nome de uma rua da cidade.
(1) Refere-se talvez à prática das armações de remunerar os pescadores com 1$00 por dia, mais uma certa quantidade de peixe (de pouca valia, naquele tempo), valor que se manteve ao longo de muitas décadas, jamais levando em conta a inflação. O romance "Trapo Azul" foi objecto de apertada censura prévia, o que não impediu o romancista de, engenhosamente, salientar o absurdo desta situação.
6 Comentários:
Hoje é Dia Internacional da Mulher, uma homenagem merecida no dia 8 de cada ano e todos os 364 dias se fosse possível. A nossa vida só faz sentido sem elas. Daí o desafio do Reflexus...
Sorrisos ;)
Há alguma rua em Sesimbra com o nome da Sra.??? Em vez de darem nomes de pessoas que nunca cá vieram, o serviço de toponímia da Câmara devia investigar a históris local e os seus fazedores e justamente homenageá-los.
Não creio que haja no concelho rua com o nome da Almerinda.
Concordo com a sua sugestão. A mim não me chocaria, até, que colocassem o nome na rua onde nasceu. Seria talvez uma injustiça para com o Coronel Barreto, mas a verdade é que também tiraram uma rua à Felicidade para a dar à memória de Pelínio Mesquita - e bem!
A dimensão de Almerinda não é muito conhecida: por um lado, praticou modalidades cuja importância ainda não é muito valorizada; por outro lado, o período de glória da atleta passou-se há muito tempo. A verdade é que nem mesmo familiares directos desta pexita, com os quais falei, alguns morando ainda na mesma rua em que ela nasceu, tinham conhecimento do papel que a sua parente teve no desporto de Almada.
Almerinda Correia merecia sem dúvida uma homenagem toponímica em Sesimbra. A Atleta tem uma rua com o seu nome no Concelho de Almada (Sobreda)e foi agraciada ainda em vida com a medalha de ouro da Cidade. Tive o prazer e privilégio de a conhecer pessoalmente. Uma senhora adorável e terna, com uma humildade e simplicidade desconcertantes. Pela postura de vida, pelo brilhantismo desportivo na década de 40,pela coragem de contrariar o preconceito relativo ao universo feminino de um Portugal de há sessenta anos atrás, Almerinda Correia sem dúvida deveria receber uma referência na terra onde nasceu.
Eu, e todos nós, é que lhe agradecemos este relembrar de Almerinda!
Só agora reparei que assino com o boneco da avestruz...
Não ligue, é uma piada entre mim e os meus alunos...
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