«Três léguas a poente de Setúbal, e seis de Lisboa para o sul, na ladeira de um monte tem seu assento esta Vila, a quem os Latinos chamam Cætobris. Tem quinhentos vizinhos com duas Igrejas Paroquiais, a de Santiago com Prior, e dois Beneficiados Curados, e quatro simplices da Ordem de Santiago, e Santa Maria dentro do Castelo com Prior e dois Beneficiados Curados da mesma Ordem; uma Ermida do Espírito Santo, outra de Santa Anna, Casa de Misericórdia, e Hospital. Assistem ao seu governo Civil um Juíz de fora, Vereadores, Procurador do Concelho, Juíz dos Órfãos com seu Escrivão, Almoxarife, Juíz dos direitos Reais com seu Escrivão, e mais Oficiais. Ao Militar um Capitão-mór, Sargento-mór e duas Companhias de Ordenança com seus Oficiais. Tem duas fortalezas, uma na Vila e outra junto dela, a que chamam a Fortaleza do Cavalo, com guarnições de Soldados pagos com Cabos actuais, e tendo o que a governa patente de Capitão, está debaixo da jurisdição do Capitão-mor da dita Vila; e tem também nos fortes da Costa até à Torre de Outão, e pela outra parte até à Fortaleza de Albufeira, a mesma jurisdição.
«Produz esta Vila em umas terras do seu termo, que ficam sobre o mar, excelentes pedras molares das mais alvas que tem o Reino. Foi fundada pelos Galos, Celtas e Sárrios, como dizem muitos Autores, e a conquistou aos Mouros El-Rei D. Afonso Henriques pelos anos de 1165. Depois se arruinou de todo com contínuas guerras, e a mandou povoar de novo El-Rei D. Sancho I, seu filho, no ano de 1200, com grandes foros e privilégios, encarregando a povoação aos Franceses, que um ano antes o vieram ajudar nas guerras contra os Mouros.
«É senhor desta Vila o Duque de Aveiro, e nela entra em Correição o Ouvidor de Azeitão; é da Provedoria de Setúbal e Arcebispado de Lisboa. O seu termo é abundante de pão, vinho, azeite, frutas, gado, caça e colmeias; tem muitos pinhais e boas quintas; consta de quatrocentos vizinhos, que se dividem pelos lugares seguintes, Azeitão, Camarate, Aldeia dos Pinheiros, Aldeia das Vendas, Aldeia de Vila Fresca, onde está a Igreja Paroquial da invocação de S. Simão, Curado da Ordem de Santiago, Aldeia dos Castanhos, Aldeia de Nogueira, aonde está a Igreja Paroquial da invocação de S. Lourenço, Curado, que apresentam os fregueses, e a Casa da Misericórdia. As outras Aldeias são a Aldeia Rica, Aldeia dos Oleiros, Aldeia dos Irmãos, o Porto da Vila, Coina a Velha de cima, Coina a Velha de baixo.
«No meio destas Aldeias está um soberbo palácio com magestosa entrada, e uma grande cerca com quatro ruas mui compridas, todas povoadas de árvores silvestres, boas vinhas, e pomares de todo o género de frutas, excelentes abrunhos, e muitas frutas de espinho, com muitas fontes nativas de boas e delgadas águas. Neste Palácio viviam os Duques de Aveiro, e era a sua Corte; neles reside hoje o seu Ouvidor e mais oficiais da Correição e Justiças da terra. Junto deste Palácio está o Convento de Frades Dominicos, cuja Igreja é da invocação de N. Senhora da Piedade, o qual fundou Estevão Esteves, Cavaleiro rico e bem herdado, que com sua mulher Maria Lourenço fizeram pública doação de mão comum aos quinze dias de Setembro de 1434 a este Convento, por virtude da qual tomou logo posse o Prior de Benfica, Frei Mendo, de todo o assento de casas, quinta e pomares, que devia ser o mesmo Frei Mendo de Santarém que também foi tomar posse do sítio de Aveiro. El-Rei D. Duarte lhe deu muito boas peças para o Côro e Sacristia. e como Varão Religioso ajuntou uma indulgência pleníssima, que alcançou da Sé Apostólica para todos os Frades que nele vivessem e morressem. Fundou-se numa quinta do Dotador, e se lhe lançou a primeira pedra dia de N. Senhora do O, do ano seguinte, concorrendo para a obra El-Rei D. Duarte e seu filho D. Afonso V, que entre outras mercês que fez a esta Casa foi dar-lhe três moios de renda dos fornos de Palhais, e dinheiro para os carretos, confirmando as doações que lhe tinha feito El-Rei D. Duarte e a Rainha D. Leonor. Residem nesta Casa quarenta Frades, que têm grande opinição entre os da Província na observância de suas constituições.
«No termo da Vila, em meia légua de distância, está a grande quinta que chamam Calhariz, cabeça de um Morgado de grande rendimento. Consta de uma casa de campo edificada ao [estilo] moderno, em cuja arquitectura se observou igualmente magnificência e as regras da arte, e estando custosamente adereçada com pinturas, estátuas de pedra e preciosas alfaias, feitas pelos melhores artífices da Europa, se faz mais célebre por uma Igreja que tem, cuja Capela, retábulo e frontal é de pedras embutidas, e está enriquecida com um santuário de inumeráveis Relíquias, com cinco Jubileus perpétuos em cada ano e com ser privilegiado o Altar-mór dois dias na semana, também perpétuo, sem que seja preciso haver mais número de Missas que a quotidiana.
«Foi concedido este Breve, a que não se achará semelhante em outra casa de campo, pelo Sumo Pontífice Inocêncio XI, a D. Luís de Sousa [...] para a quinta de Calhariz, a cuja moderna arquitectura deram princípio, derrubando o antigo e nobre edifício que nela havia [...]
«Tão magnificamente se conserva nesta quinta o antigo Morgado dos Sousas, que com o nome de Calharizes se distinguem dos mais Fidalgos deste apelido, e a sua varonia, que é Pestana, teve princípio em Joanne Eannes Pestana, que viveu em Évora, e [...] era descendente de D. João Pestana, que em Castela foi pessoa grande em tempo de Cid Rui Dias, que o armou Cavaleiro. Casou Joanne Eannes Pestana com Dona Maria Affonso de Parada, filha de João de Parada, Reposteiro-mór de El-Rei D. Afonso.[...]»
"Corografia portugueza e descripçam
topografica do famoso reyno de Portugal"
Pe. António Carvalho da Costa - Lisboa, 1712.
(existe um exemplar fac-similado na Biblioteca de Sesimbra)
Notas:
- Crê-se actualmente que a designação de Cætobris (Cetóbriga) se refere a Setúbal;
- Vizinhos: habitantes; eram calculados como unidades familiares; seriam portanto umas 400 as famílias residentes no concelho.
- Note-se a referência às "pedras molares", provavelmente do mesmo local onde se encontram as actuais pedreiras;
- Correição: acção exercida pelo corregedor, magistrado representante do Rei;
- Frutas de espinho: poderiam ser laranjas, limões, limas, etc.
- Frades Dominicos: frades dominicanos (da Ordem de S. Domingos)
- Dotador: doador, ou seja, Estevão Esteves.
- Carretos: carregamentos
- o Cid Rui Dias referido é o famoso "El Cid, Campeador" (1049 - 1099). Foi o protótipo dos cavaleiros medievais castelhanos; desterrado pelo rei Afonso VI, conquistou Valência aos mouros e estendeu o domínio de Castela até ao Mediterrâneo. As suas façanhas foram cantadas tanto por Árabes como por Cristãos, pelo que era uma honra ter sido por ele armado cavaleiro.
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