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sexta-feira, junho 23, 2006

Terra

     «Para Custódio, a morte do rei, motivo do regresso precipitado a Torranjo, era o prenúncio de tempos novos e terríveis, contra os quais devia precaver-se com a necessária antecipação. Para começar, classificou de republicanos todos aqueles que corriam os montes , roubando ou cometendo tropelias de vária ordem, e fez saber às autoridades de São Gião que receberia a tiro quem tentasse cometer tropelias nas suas propriedades. Depois, desfez-se pouco a pouco dos rendeiros, cada vez mais exigentes e improdutivos, temendo as reivindicações após a queda provável da monarquia, e por fim comprou armas novas, pistolas e carabinas, e disse, Agora já pode vir essa canalha, será recebida como merece.
     E assim a terra dos Santiagos voltou à imobilidade do passado, para sossego da família e desgosto dos homens do povo, de novo obrigados a procurarem trabalho longe, trabalho cada vez mais raro, pois as más notícias provenientes da capital permaneciam ter o condão de paralisar a actividade dos campos. Foi então que as autoridades de São Gião, assustadas com ao maus prenúncios, temendo os protestos dos trabalhadores e querendo mostrar independência em relação aos agrários, decidiram distribuir as terras de uso comum em torno das povoações.
     Quando soube da notícia, Custódio teve uma reacção que os mais velhos identificaram como o comportamento usual do bisavô: ouviu em silêncio e não fez comentários, levando a concluir que a sua resposta, quando a desse, seria terrível. Dias depois, os homens do povo pediram licença para lhe falar. Custódio recebeu-os com ar distraído, folheando papéis, sem responder à saudação, e perguntou, Qual é o problema? Toríbio Centeio, neto já maior daquele que fora um dos companheiros de guerrilha do primeiro dos Santiagos, avançou e disse:
     – Lá na Câmara querem-nos dar as terras do povo, e nós vimos aconselhar-nos com o patrão Custódio, porque em boa verdade não sabemos o que fazer.
     – Não percebo a tua dúvida, Toríbio – respondeu o amo de sobrolho franzido. - Se lhes dão as terras é porque acham que elas são vossas, e nesse caso não vejo motivo para não as aceitarem.
     – Fez-se o silêncio, mas não havia quem tirasse dali os homens, nem Custódio parecia interessado em alimentar o diálogo.
     – Se o patrão não vê então inconveniente…
     – Nenhum, homem. Se lhes querem dar as terras, é porque têm o direito de o fazer, aceitem-nas. E se houver algum problema, já sabem: falem comigo.
     Três meses depois – durante os quais Santiago aguardou calmamente, fugindo aos encontros com os notáveis de São Gião – recebeu nova visita de Toríbio Centeio.
     – Venho pedir-lhe o favor de ficar com a minha terra patrão Custódio.
     – E para que quero eu a tua terra?
     – Não sei, patrão Custódio.
     – Conta-me lá o que se passa, Toríbio. Será que a terra tem bichos?
     – Não tem bichos e é tão boa como as demais, mas na verdade não sei o que hei-de fazer com ela.»

Mário Ventura
Vida e Morte dos Santiagos
[p.376/378]

2 Comentários:

Às 23/6/06 , Anonymous Anónimo disse...

Este Navegador é um verdadeiro serviço público. Devia receber uma medalha de ouro no 4 de Maio. Só é pena a gente nunca saber ao quem vem. É que as caixas de comentários são como os melões. Só depois de abertas...

João, pondere a moderação de comentários. É remédio santo.

 
Às 23/6/06 , Anonymous Anónimo disse...

Não é ao "quem vem". É "ao que vem". Está vem de ber.

 

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