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segunda-feira, março 20, 2006

Ilse Losa


      Ilse Losa




«Gosto de observar Teresa a corrigir os cadernos escolares à luz do candeeiro. Sempre que os disparatados erros dos seus pequenos alunos a fazem sorrir, ela inclina a cabeça sobre o ombro, as pálpebras descem-se-lhe ligeiramente e o rosto ganha uma graça meiga e quente. Talvez no conceito geral Teresa não seja uma mulher bonita: tem feições pouco regulares, a boca muito carnuda, o nariz comprido demais e quando lhe estremecem as narinas faz lembrar um coelhinho. Mas tudo isso se harmoniza com o corpo esbelto de porte direito, com o pescoço alto, a cabeça estreita, o cabelo dum negro brilhante e espesso que ultimamente junta num puxo arrepanhado na nuca.

«Teresa dá aulas na escola primária duma zona pobre, num edifício velho, quase a cair, onde largas frinchas por debaixo das portas e das janelas provocam constantes correntes de ar. Se ao princípio manifestara entusiasmo pelo curso, embora apenas o tirasse porque Severino achava ser o curso que levava menos tempo, ficava barato e proporcionava rapidamente o ganha-pão, pouco a pouco foi ficando desiludida.

«"As colegas mais velhas batem naquelas pobres crianças a torto e a direito", diz. "Eu só me resolvo a bater-lhes, mas apenas nas mãos, se me aparecem com as orelhas sujas ou piolhos na cabeça depois de as ter repreendido repetidas vezes". Por vezes ela chega desanimada a casa, dizendo não suportar por muito mais tempo o ensino a crianças que, de tão carecidas de carinho e de alimentação, nem conseguem prestar atenção às suas explicações. E começamos a fazer planos para uma livraria, num bairro afastado do centro e de como haveremos de juntar o dinheiro para isso. Teresa ajudar-me-á na arrumação dos livros, no balcão, na caixa.

«Dentro de dois ou três anos começaremos a editar uma colecção de livros de pequeno formato, de preço módico, mas de muita qualidade. E havemos de contratar óptimos tradutores para os livros estrangeiros, apresentar capas de bom gosto, havemos de nos prestigiar para progredir depressa, poder dispensar a loja e dedicar-nos exclusivamente às edições. E Teresa gostaria de organizar uma colecção para crianças, com gravuras coloridas, e sempre que estamos com o Renato aconselha-se com ele sobre o assunto... Planos, planos, planos... E depois tudo continua na mesma, Teresa a tentar ensinar as crianças cheias de fome e piolhos e eu a traduzir cartas comerciais a troco de remuneração mais ou menos razoável e livros de ficção por remuneração humilhante, porque o comércio governa e a literatura vegeta. »

Ilse Losa
"Sob Céus Estranhos", Ed. Afrontamento


Escritora portuguesa de origem alemã, nascida em Bauer, cidade alemã próxima de Hanôver, a 20 de Março de 1913. Tinha ascendência judia e veio para Portugal em 1934, fugindo à perseguição nazi. É conhecida principalmente pelos seus livros para crianças e pelo seu livro sobre as memórias das perseguições aos judeus com o título "O Mundo em que vivi” (1943). Recebeu, em 1991 o Grande Prémio de Livros para Crianças atribuído pela Fundação Calouste Gulbenkian. Outros livros conhecidos desta escritora são "Um Fidalgo de Pernas Curtas" e "Contos de Eva Luna." Faleceu a 6 de Janeiro de 2006.

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