Coutada
Oriundo das paragens agrestes do interior nordestino, Miguel Torga não deixou escapar a oportunidade de escrever sobre as amenidades do litoral estremenho para ironizar, propondo esta doce província para coutada do lirismo nacional. A Estremadura «O nosso lirismo devia ser coutado. O País devia consagrar-lhe um parque de reserva, onde fosse proibido dizimar as espécies que ainda restam, deixando-as viver num paradisíaco devaneio, à lei da inspiração. E nenhum sítio mais indicado para isso do que esta província portuguesa, feita de dunas e calcário. Nos areais onde já D. Dinis trovou, e na pedra mole onde Afonso Domingues, Mateus Fernandes e os Arrudas arquitectaram e esculpiram, poderiam os imaginários e poetas de agora continuar a construir, a lavrar e a rimar endechas. Ao cabo e ao resto, também dos seus artistas vive uma pátria. E ali onde se eternizou o melhor do seu génio, é que era dar-lhes foral. Donos e senhores de Leiria, de Tomar, da Batalha, de Alcobaça e de Óbidos, sentir-se-iam certamente felizes sem grandes encargos para a grei. A terra não é tão boa que se perdesse muito. O iodo do mar tonificar-lhes-ia o sangue, já um pouco delido. E outros túmulos de D. Pedro e D. Inês que rendilhassem, ou meia dúzia de éclogas que escrevessem, era mais um pecúlio a juntar ao património comum. Seriam, afinal de contas, os nossos templários de agora, ou frades bernardes laicos menos nutridos, que os tempos são outros, mas ainda assim vitaminados com boa fruta, curtidos com bom vinho e agasalhados num clima doce. Poderiam passear à sombra evocadora do grande pinhal que o colega medieval semeou, sonhar nas margens do Lis e do Lena, do Alcoa e do Baça, que são rios encantadores para sonhar, e em Pedrógão, S.Pedro de Muel, Nazaré, S. Martinho, Baleal, Ericeira e Sesimbra tomariam banhos de mar sem perigo de maior. Visitariam Mafra de vez em quando, como penitência, gozariam férias graníticas em Sintra, e os seus retiros espirituais seriam na Arrábida, fora do convento. Teriam grandes motivos poéticos e humanos à mão de semear, como a vida dos pescadores da Nazaré, as peregrinações a Fátima, a morte lenta à boca dos fornos da Marinha Grande, a trituração das pedras e dos homens para fazer cimento na Maceira, sem falar no clássico manancial de Aljubarrota, assunto que nunca mais acaba - todas as condições, como se vê, para que outro apogeu da nossa cultura surgisse das margas onde ela afinal tem as suas raízes.» Miguel Torga, "Portugal" |
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