ll

sexta-feira, março 18, 2005

Luiz Saldanha


O Professor Luiz Saldanha é hoje muito ignorado pelos sesimbrenses, que tanto lhe devem. A esta ocultação da memória do grande biólogo juntou-se a aversão que - por culpa dos burocratas - os pescadores têm hoje ao Parque Marinho a que justamente foi dado o seu nome. Reproduzo aqui um pequeno memorial de um amigo de Luis Saldanha, arqueólogo e investigador de relevo, Vitor Oliveira Jorge, igualmente ligado a Sesimbra pelas investigações que aqui realizou:

«Luiz Saldanha era um homem de toda a terra, que incansavelmente percorreu, levado pelos seus estudos oceanográficos, mas não só: acima de tudo, o Luiz amava a vida, vivida intensamente. Lembro-me dele em Sesimbra, nos anos sessenta, preparando a tese de doutoramento, com a ajuda da sua primeira mulher. Num pequeno escaler, que tinha comprado a meias com o tio Eduardo, acumulavam-se o equipamento de trabalho e os frasquinhos onde ia recolhendo as amostras; enquanto nós prospectávamos os planaltos, ou escavávamos na Lapa do Fumo, ele passava os dias a mergulhar, não raro na companhia de colegas de outros países (sobretudo franceses), com os quais mantinha relações muito constantes. Ao prazer da investigação científica juntava-se o do mergulho. E a casa da Cotovia, que era a nossa base logística, tornava-se um centro de convívio de naturalistas e arqueólogos: por lá passava o Prof. Telles Antunes, grande geólogo e paleontólogo, que connosco continua a trabalhar, na determinação de restos ósseos provenientes de estações pré-históricas; o numismata José Rodrigues Marinho, e outros.

«Nunca vi Luiz Saldanha como, propriamente, um "intelectual"; era um homem de experiência, e de experiência da natureza em todas as dimensões, desde o mais profundo dos oceanos, até aos desertos que tanto amava. Gostava de contar histórias saborosas dos ambientes extremos (como a Antártida) onde tinha estado; era talvez um tímido, que se refugiava nessas "estórias" para não falar diretamente de si. Do tio, de quem tinha recebido uma forte influência, herdou o gosto do desenho (Serrão foi um pintor antes de se consagrar à arqueologia), das miniaturas, da história militar, da própria etnografia amadora. De facto, a mim (que, como ele, tinha horror à guerra e cuja principal obsessão era escapar-me à vida militar e à inevitável mobilização para as colónias como "atirador", razão por que tudo fiz para abraçar a carreira universitária) surpreendia-me a sua descontraída "versão" das experiências por que tinha passado no Norte de Angola, durante o mais aceso da guerra colonial.

«Evidentemente que Luiz Saldanha era absolutamente anti-militarista e anti-colonialista, de acordo, aliás, com o ambiente que se respirava na casa de Eduardo Serrão; foi lá parar obrigado, como tantos jovens do nosso tempo; mas aproveitava as perigosíssimas deambulações pelo mato para, qual naturalista do séc. XIX, por vezes antes ou depois de um tiroteio, recolher espécies faunísticas, e objectos etnográficos, tendo chegado a publicar trabalhos sobre estes últimos, no que considerava um dos seus "hobbies". É claro que, tal como nas ilustrações dos seus trabalhos - especializados ou de divulgação - as estampas eram de sua autoria. Acredito que a sua disposição, física e psíquica, de atleta, que também se revelava nos estudos oceanográficos, e nas deambulações por todo o planeta (como caminhar a pé pelo Sara), o tenha auxiliado a passar por esse calvário da guerra com um estado psicológico invejável.

«Lembro-me de uma vez lhe ter dito (eu, que era dez anos mais novo, e na altura aprendiz de arqueólogo) que tinha muita nostalgia de não ter seguido ciências naturais, para as quais ainda cheguei a estar inclinado durante os primeiros anos de liceu; e que ele me respondeu enfaticamente: "mas tu és um naturalista"... o que, evidentemente, me confortou muito. Saldanha fez parte daquele conjunto de pessoas que, tal como o seu tio, tal como Orlando Ribeiro, sempre me animaram a prosseguir; e bem sabemos o quanto importante é isso num país onde, para fazer qualquer coisa de diferente, de criador, é preciso lutar contra quase tudo e contra quase todos. Um país terrível, onde, sob a fachada dos "brandos costumes", hipocritamente, se esconde amiúde uma vontade de asfixiar toda e qualquer atitude de afirmação dos outros, toda e qualquer tentativa de "fazer diferente". Sobretudo quando essa atitude se veste com a roupagem da marginação e do silêncio, com a sua vasta teia de cumplicidades medíocres.

«As últimas recordações que guardo dele são de um rápido almoço em minha casa, quando me veio trazer uns livros que o tio me deixara, aproveitando uma reunião de júri no Porto; da campanha de Jorge Sampaio, quando nos encontrámos em Lisboa, numa sessão sobre o ambiente, promovida por Mário Baptista Coelho; e na cerimónia em Sesimbra, aquando da atribuição, pela autarquia, do nome do tio a uma das ruas da vila. Não podia imaginar que o Luiz desapareceria assim de repente, sem o poder visitar, como prometera, no Laboratório Marítimo da Guia, e na sua casa de Cascais. Com o desaparecimento de amigos como este, e o afloramento de algumas deslealdades e traições com que a vida nos vai surpreendendo, ficamos maios solitários e tristes. Vemo-nos forçados a prosseguir o caminho com vozes a susurrar-nos ao ouvido a tremenda injustiça do mundo.»

Vitor Oliveira Jorge in Patrimónios Partilháveis

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial

Aguarelas de Turner|  O amor pelas coisas belas |  Angola em Fotos  Aldrabas e fechaduras| Amigos da Dorna Meca| Amigos de Peniche| André Benjamim| Ao meu lado| Arrábida| (flora) Arrábida| (notícias) Arrastão| @tlanti§| Atlântico Azul| Atitude 180| Badamalos| Banda da SMS|  Barcos do Norte | B. dos Navios e do Mar| Blasfémias| Blue Moon I|  Boa Noite, Oh Mestre! | Canoa da Picada|  Carlos Sargedas |  Caminhos da Memória |  Catharsis |  Caxinas... de Lugar a freguesia  | Cetóbriga| Clube Leitura e Escrita| Coelho sem Toca| Cova Gala|  Crónicas de 1 jornalista | De Rerum Natura|  Desporto Saudável | Dias com Árvores| *** Dona Anita ***| Do Portugal Profundo| El mar és el camí| Espaço das Aguncheiras| Estórias de Alhos Vedros|  Estrada do Alicerce | Expresso da Linha|  Filosofia Extravagante | Finisterra| Flaming Nora| Grão de Areia| Gritos Mudos| Homes de Pedra en Barcos de Pau| Imagem e Palavra| Imagens com água| Imenso, para sempre, sem fim| O Insurgente| J. C. Nero| José Luis Espada Feio|  Jumento  Lagoa de Albufeira| Mar Adentro Ventosga| Magra Carta| Marítimo| Mil e uma coisas| Milhas Náuticas| Molino 42| My Littke Pink World| Nas Asas de um Anjo| Navegar é preciso|  Navios à Vista |  Nazaré | Neca| Nitinha| Noites 100 alcool| Nós-Sela| Nubosidade variabel| O Calhandro de Sesimbra|  Orçadela | Página dos Concursos| Pedras no Sapato|  Pedro Mendes | Pelo sonho é que vamos| Pescador| Pexito do Campo|  A Pipoca mais Doce | Ponto de encontro| Portugal dos Pequeninos|  Praia dos Moinhos |  Quartinete | Reflexus| Rui Cunha Photography| Rui Viana Racing| Rumo ao Brasil|  Ruy Ventura | Sandra Carvalho| Sesimbra arqueológica|  Sesimbra Jobs |  Sesimbra Jovem |  Sesimbra, três Freguesias, um Concelho| Se Zimbra|  Simplicidade | Singradura da relinga| Skim Brothers| Sonhar de pés presos à cama|  Tiago Ezequiel |  Tiago Pinhal |  Trans-ferir | Una mirada a la Ria de Vigo|          Varam'ess'aiola |  Ventinhos |


Canoa da Picada